terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Parte 6

6 - Vôo Noturno



Pálida e abatida, Batilde perambulava pelo castelo de seu pai, no qual desde o desaparecimento dos meninos reinava a tristeza e o luto. Pensava no homem mutilado, no mágico ferreiro ao qual fora feita uma injustiça tão cruel e que agora era dono de seu coração. Tentou conversar com o pai sobre ele, primeiro timidamente, depois com insistência, perguntando se já não era tempo de tirá-lo da ilha e conceder-lhe sua antiga posição, como era justo e de direito, pois ele havia sido tratado com muita perversidade. Começou então a falar de injustiça e provocou a ira do rei.
Vieram também muitos pretendentes, mas ela rejeitou a todos. Isso fez com que o rei ficasse mais enraivecido e levou-o a suspeitar o que estava acontecendo com a filha. Então, decidiu mandar alguns servos até a ilha para matarem o ferreiro. Mas no dia em que deu essa infame ordem e dois servos armados embarcaram num bote, o rei ouviu chamarem seu nome do lado de fora do castelo.
Foi até a janela e espiou para fora, mas como a noite já havia descido não conseguiu ver ninguém. Será que se enganara? Estaria imaginando coisas? Foi deitar-se, mas não conseguiu dormir. Passado algum tempo, ouviu novamente seu nome sendo chamado do lado de fora. A lua aparecera atrás das nuvens e inundou a muralha e as ameias do castelo com sua luz prateada. De novo o rei ouviu o chamado:
- Rei Nidung, acorde!
- Quem está me chamando? - perguntou o rei, debruçando-se à janela. Então viu na ameia mais alta da muralha, bem diante de seu quarto, para lá do pátio do castelo, uma figura que se assemelhava a um imponente pássaro. O rei estremeceu, pois era como se fosse um mensageiro de outro mundo, um arauto da desgraça. O luar se derramava sobre a plumagem do pássaro, produzindo um cintilar metálico.
- Quem está me chamando? - perguntou Nidung novamente. - Quem está aí em cima? Um fantasma?
Sua voz tremia de medo.
- Ouça-me, rei traiçoeiro! Nem rei você merece ser chamado! Um homem que não mantém sua palavra! Infiel! Infame!
Estarrecido, o rei reconheceu Wieland nessas palavras.
- Como conseguiu chegar aí? - perguntou, recobrando coragem. - Se você é Wieland, o ferreiro, desça e venha falar comigo frente a frente. Por acaso você sabe voar?
- Sim - tornou Wieland -, e estou livre do seu poder: minha arte triunfou sobre ele! Ouça, pois, o que tenho a lhe dizer. Eu o amaldiçôo, homem desgraçado e indigno. Você me roubou, assaltou-me como um vil pirata. Prometeu a mão de sua filha e não honrou a palavra dada. Mutilou-me e me manteve preso como escravo. Tudo isso você fez comigo, e pensou que poderia continuar impune. Pois ouça bem como me vinguei de você. Eu matei seus dois filhos, fiz taças com suas ossadas e você bebeu nelas. Mas agora você também perdeu a sua filha. A dor da morte está em seu coração, pois ela me pertence, assim como o anel que você me roubou. Sua filha vai abandoná-lo e vagar pelo mundo até me encontrar. De nada adiantará você casá-la. E agora chame os seus besteiros (flecheiros) e guerreiros para arremessarem os dardos e me alcançarem aqui nas alturas. Eu o amaldiçôo, rei infame!
Depois destas últimas palavras, Nidung saiu correndo, louco de raiva, e chamou os guardas, os besteiros e os arremessadores de dardos para derrubarem a figura que sobre pairava lá em cima, homem, pássaro ou fantasma, e o colocassem aos seus pés como uma presa de caça. Os soldados, apesar de tremerem de medo, atiraram contra o homem emplumado, mas este, batendo as poderosas asas metálicas, logo ficou fora do alcance das flechas e dos dardos. Ouvia-se apenas seu riso sardônico, mas dele mesmo não se via nem a sombra. Batilde postou-se ao lado do pai. Seu rosto estava banhado de lágrimas, e, aflita, ela esquadrinhou o céu noturno. Muito tempo depois ainda ouviu a gargalhada que lhe cortava o coração. Desde esse momento o rei Nidung tornou-se um homem alquebrado. Exultante, Wieland elevou-se nas alturas. Estava livre de toda trama, humilhação e desgraça. O que nenhum homem nunca conseguira fazer ele o realizou com sua arte e perícia.
Voou sobre a terra e o mar. Deixou-se levar pelo pelos ares, aprendeu a reconhecer as correntes de ar, as fortes lufadas de vento, as calmarias e as tempestades e sabia como adaptar-se a elas. Pousou então sobre a beira de um rochedo junto ao mar, para descansar durante a noite. Ao alvorecer subiu novamente às alturas e, tal como as gaivotas, voou quase sem bater as asas, seguro da direção que o levaria de volta a sua terra.
Com que assombro seus irmãos, as mulheres e as crianças não receberam aquele que havia tanto tempo julgavam perdido! Não demorou muito e Helferich, o médico, devolveu aos maltratados pés de seu irmão, a poder de pomadas e ataduras, as forças que eles haviam perdido, de forma que Wieland logo começou a andar como antes. Já não era jovem, queria apenas paz e tranqüilidade. Nada mais o atraía para longe. Dedicou-se apenas ao seu ofício, a arte de forjar o ouro, a prata e o ferro. Muitas vezes pensava em Batilde, a quem tanto amara. Quando seus pensamentos eram tomados pela imagem dela, sentia uma doce lembrança, ora muito intensa, ora totalmente desvanecida.
Certo dia uma mulher que parecia muito fatigada surgiu no caminho que levava à casa de Wieland. Sua cabeça estava coberta e ela trazia uma trouxa debaixo do braço. Percebia-se que andara muito tempo e por ásperos caminhos. Aproximando-se, ela retirou o lenço da cabeça e Wieland reconheceu-a: era Batilde, a orgulhosa e inacessível filha do rei Nidung.
- Sou eu, Wieland - disse ela. - Não me reconhece?
Vejo que ainda está usando o meu anel. Sei que é seu, mas ele também me pertence. Ele prende meu coração com algemas, como uma vez prendeu o seu, e assim nos prende um ao outro. Suplico-lhe, deixe-me usá-lo para que o seu coração volte para mim. Acredite, não é um desejo maldoso. Se o seu coração voltar para mim, serei sua para sempre.
Wieland olhou-a pensativo. Ficou muito comovido ao vê-la diante de si como uma pedinte. Ela continuou:
- Perdoe o que o meu pai lhe fez. Ele está morto e seu reino já não existe. Nossos inimigos nos atacaram e me levaram como prisioneira, mas consegui fugir. Por muito tempo vaguei pelo mundo, até chegar aqui. Faça de mim o que quiser, mate-me ou aceite-me ao seu lado e deixe-me servi-lo. Exausta, ela deixou-se cair aos pés de Wieland. Confuso, ele ajoelhou-se ao lado dela e afastou-lhe da testa o desgrenhado cabelo. Percebeu então que ela havia envelhecido tal como ele, mas continuava bela. Enternecido com sua humildade e desamparo, trouxe-lhe um copo de vinho para ela fortalecer-se. Enquanto ela bebia, Wieland tirou o anel de seu dedo e colocou-o no dela. Sentiu que seu antigo amor não desaparecera. Também sentiu como a felicidade lhe inundava o coração. Tomou-a nos braços e levou-a para casa. Desde então viveram felizes até o resto de seus dias. As asas que Wieland construíra enferrujaram-se, pois eram feitas de arame finíssimo, e não levaram mais ninguém pelos ares.

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